“É um sonho, você diz.
Não é um sonho, elas respondem.”
Steve Erickson
Foi no final dos anos 60, pelo que me lembro. Há três ou quatro noites que não conseguia dormir muito bem. O sono estava agitado e os sonhos eram confusos. Pouco recordava do que havia sonhado, mas alguma coisa me dizia que aquelas noites não eram apenas de pesadelos. Algum lugar dentro da minha cabeça me dizia que tinha algo mais envolvido naquilo tudo.
por Bárbara Garay Costa
Depois de alguns
dias resolvi dormir com um pequeno pedaço de papel e uma caneta embaixo do
travesseiro. Na minha ideia, se eu fosse ágil o suficiente conseguiria anotar o
que tinha sonhado assim que acordasse, enquanto me equilibrava naquela linha
tênue que separa o sono da consciência. Foram necessárias mais algumas noites
angustiantes para que eu me desse conta de que aquilo não funcionaria.
Naquela época
morava com meu avô em um grande sobrado do início do século já deteriorado pelo
tempo. No térreo ficavam sala, cozinha, um banheiro, uma pequena biblioteca e a
varanda; no segundo andar, os quartos. Eram quatro. Um alugado para um jovem
casal do interior que estava terminando os estudos na cidade, dois eram meu e
de meu avô e o outro estava vago.
Cansado das
noites mal dormidas e cada vez mais confuso com a obscuridade de meus sonhos,
resolvi dividir com meu avô e com o casal a minha angústia. Durante o café da
manhã contei-lhes tudo o que se passava e percebi que, depois de desabafar, as
ideias foram ficando mais claras. Naquela noite fui dormir com a certeza de que
acordaria com tudo resolvido. Ajeitei-me para dormir, enchi um copo d’água,
subi as escadas de madeira cujo rangido era ainda mais alto no silêncio da
noite, entrei no meu quarto, fechei a porta nas minhas costas, apaguei a luz,
deitei e dormi.
Andava por um
gramado, o sol estava se pondo e o vento soprava frio. Não conseguia reconhecer
o lugar, mas tinha certeza de já ter estado ali. Olhei para o horizonte e vi um
vulto aproximar-se lentamente. Era uma mulher com longos e lisos cabelos pretos
divididos ao meio, vestindo um saiote de palha trançada. Parecia flutuar sobre
a grama. Logo que a vi, movia-se lentamente em minha direção, mas quanto mais
se aproximava, mais rápido se movia e mais alta parecia. Parou a uns dois
metros de distância e pude ver seu rosto: pálido como uma vela. Seus olhos eram
grandes e seu olhar profundo e amedrontador. Apontou para uma árvore que ficava
próxima de onde estávamos e abriu a boca para falar ao mesmo tempo em que
moveu-se repentinamente para cima de mim.
Acordei. Suando
frio, rapidamente acendi a vela que estava no criado mudo, a chama bruxuleava e
transformava as sombras do guarda roupas e dos outros moveis em estranhas e
macabras figuras. Tomei em um gole só todo o copo de água e a minha sede não
saciava. As ideias continuavam perturbadas e cada vez que fechava os olhos o
momento do ataque da estranha mulher me voltava à mente. Caminhei pelo quarto,
senti frio e calor, pensei, anotei, rolei na cama até ser vencido pelo sono.
Herdei da
perturbada noite, olheiras e um cansaço enorme. Sentado na mesa para o café da
manhã, relatei a noite aos meus companheiros e lembrei que antes de acordar, no
rápido instante que antecedeu o ataque daquela mulher, enxerguei ao longe o que
me pareceu ser a silhueta de uma catedral, daquelas antigas, jesuíticas. O dia
foi passado dentro da biblioteca e nos dedicamos quase que completamente a
pesquisas relacionadas aos povos jesuíticos, já que a única lembrança mais
próxima da realidade que tinha era a da catedral.
Já estava
anoitecendo quando Bill, um dos jovens que morava conosco, encontrou em um
velho e empoeirado livro informações sobre a lenda de uma mulher indígena de
São Miguel das Missões que, durante os conflitos locais e negociações que
antecederam a Batalha de Caiboaté, teria roubado de dentro das dependências da
Igreja ouro e documentos jesuíticos. Descoberta pelos padres jesuítas, a índia
foi severamente castigada. Dias antes de migrarem para São Gabriel, onde
aconteceriam as últimas batalhas entre Portugal e Espanha pelo território até
então divido pelo Tratado de Tordesilhas, a índia foi enterrada viva, junto com
o ouro roubado, aos pés de uma figueira que ficava atrás da catedral.
Ao terminar de ler a lenda, estávamos todos
certos do que faríamos. Na manhã seguinte partiríamos para São Miguel. Um pouco
assustados, mas motivados pelo ímpeto de encontrar ouro e os tais documentos tão
importantes da nossa história, fomos dormir. Por precaução, ou por medo,
preferi deixar a luz acesa. Deitei na cama e não demorou muito para que eu me
encontrasse em sono profundo. O sonho não se repetiu como era de costume. Mas
aquela ainda não era a minha noite de descanso. Como previsto, uma forte chuva
invadiu a madrugada, apagando as luzes e soprando um vento sombrio através das
janelas, esfriando minha cama e minha alma já amedrontada.
O dia amanheceu
frio e a chuva ainda caia. Mais calma, mas com jeito de que duraria o dia
inteiro. Continuávamos decididos a sair à caça do nosso ‘tesouro’ quando a
chuva começou a cair com mais força. A viagem até São Miguel era longa e
queríamos sair o mais cedo possível, mas a chuva nos impedia até então. Optamos por viajar a tarde e aproveitar a
manhã para pesquisar mais a respeito da tal lenda. As pesquisas foram inúteis;
nada mais se pode achar a respeito da lenda. Almoçamos, carregamos a camionete
com o que imaginávamos ser necessário e partimos para nossa jornada.
Já passava da
metade da tarde quando conseguimos sair da cidade. A chuva caia fina e as
estradas que eram de terra estavam agora cobertas por uma lama densa. Dentro da
camionete estávamos eu, meu avô, Bill e sua namorada, Kika. A viagem era longa
e nosso nervosismo não nos permitia maiores conversas ou distrações. Éramos
nós, a chuva, a ansiedade e o velho rádio sintonizado em alguma estação que
tocava Ligth My Fire, do The Doors.
Durante boa parte
do trajeto permaneci em um sono letárgico, só acordei nos momentos em que
troquei de lugar com meu avô na direção da camionete. Em um determinado ponto
da viajem fui acordado por Bill, que me chamava a atenção para a parte superior
da Catedral de São Miguel Arcanjo que já podia ser vista da estrada. Quando
finalmente chegamos a cidade de São Miguel já estava anoitecendo, o que
intensificou ainda mais a atmosfera fria do dia chuvoso.
Naqueles tempos a
entrada no sítio arqueológico era mais tranquila, não precisávamos pagar e o
local não era inteiramente cercado. Caminhamos em direção ao gramado em frente
a catedral, que era iluminada na sua frente e em seu interior por grandes
holofotes de luzes amarelas. Através das luzes era possível enxergar a chuva
que caia grossa novamente. Estávamos indiscutivelmente nervosos e nitidamente
eufóricos.
Minhas mãos
tremiam. Eu já não sabia se meu rosto estava molhado da chuva ou de suor; um
misto de expectativa e medo percorreu minha coluna causando-me um arrepio. Por
um instante eu senti como se já tivesse vivido aquele momento e, de repente, a
imagem daquela assustadora mulher tornou a invadir minha mente. Em flashes eu a
enxergava ao meu redor, me olhando, me encarando agressivamente. A medida que
avançávamos até a catedral para procurar a velha Figueira que a índia apontou em
meu sonho, as sensações ficavam mais fortes, meu corpo tremia mais e a imagem
da mulher ficava mais nítida.
A chuva caia
arrebatadoramente no momento em que finalmente avistamos a velha figueira. Ela
ficava logo atrás da catedral e a luz dos holofotes chegava fraca até lá. Abri
uma das mochilas trazidas por Bill para pegar uma lanterna e o livro em que
havíamos lido a lenda da índia cruelmente assassinada pelos padres jesuítas
caiu no chão. O vento o abriu, virou algumas de suas páginas, rasgou outras e o
arrastou até as raízes da figueira centenária. Acompanhei o movimento do livro
com a lanterna e quando direcionei a luz para a árvore enxerguei a mulher do
meu sonho, a índia. Estava parada ao lado da árvore e me olhava fixamente. O
terror invadiu meu corpo e em um gesto impulsivo movi-me para trás pensando em
sair correndo dali, derrubei a lanterna no chão e cai sentado aos pés de meus
amigos, que nada viram.
Sentia-me
completamente entorpecido, minhas ideias estavam novamente confusas e eu
visualizava cada vez mais imagens da índia. Ouvi gritos, pedidos de socorro e
vozes irreconhecíveis, de repente olhei em volta e vi a catedral reconstruída,
meus amigos não estavam mais ali e eu me vi, junto dos padres criminosos do
passado, ajudando. Eu me vi cometendo aquele ato vil e repulsivo. Foram
segundos desta memória inconsciente; acordei com meus amigos me chamando para
ver o que tinham encontrado. Levantei-me tonto e perturbado e caminhei até eles
tentando, sem forças, manter-me em pé. Chegando aos pés da Figueira pude ver no
buraco aberto no chão os motivos das minhas noites assombrosas das últimas
semanas: Uma urna de barro fechada e restos de um esqueleto humano. Minha visão
estava embaçada, minha cabeça doía, e em nenhum momento eu me vi livre dos
flashes com imagens repetidas e assombrosas da índia assassinada.
Aproximei-me do
buraco recém escavado, ainda cambaleante e com as visões ainda mais fortes, abaixei-me para pegar
a urna que provavelmente continha os
tais documentos e o ouro, quando encostei na urna ouvi um grito muito alto e
agudo, enxerguei nitidamente a índia que eu havia assassinado e senti uma mão
empurrar-me as costas. Desequilibrei-me, e o tombo para dentro do buraco que
não tinha mais que 2 metros de profundidade pareceu de um precipício. Quando
atingi o fundo senti a terra muito macia, abri os olhos e percebi que estava no
meu quarto. Rapidamente acendi a vela do criado mudo. Suando frio e ainda
apavorado levantei da cama, caminhei pelo quarto repetindo para mim mesmo que
havia sido apenas um sonho. Voltei para a cama e assim que atingi aquela linha
entre o sono e a consciência ouvi um sussurro muito próximo ao ouvido me
respondendo: “Não, não foi um sonho”.
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