quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Reencontro

“É um sonho, você diz.
Não é um sonho, elas respondem.”
Steve Erickson

Foi no final dos anos 60, pelo que me lembro. Há três ou quatro noites que não conseguia dormir muito bem. O sono estava agitado e os sonhos eram confusos. Pouco recordava do que havia sonhado, mas alguma coisa me dizia que aquelas noites não eram apenas de pesadelos. Algum lugar dentro da minha cabeça me dizia que tinha algo mais envolvido naquilo tudo.


por Bárbara Garay Costa

Depois de alguns dias resolvi dormir com um pequeno pedaço de papel e uma caneta embaixo do travesseiro. Na minha ideia, se eu fosse ágil o suficiente conseguiria anotar o que tinha sonhado assim que acordasse, enquanto me equilibrava naquela linha tênue que separa o sono da consciência. Foram necessárias mais algumas noites angustiantes para que eu me desse conta de que aquilo não funcionaria.
Naquela época morava com meu avô em um grande sobrado do início do século já deteriorado pelo tempo. No térreo ficavam sala, cozinha, um banheiro, uma pequena biblioteca e a varanda; no segundo andar, os quartos. Eram quatro. Um alugado para um jovem casal do interior que estava terminando os estudos na cidade, dois eram meu e de meu avô e o outro estava vago.
Cansado das noites mal dormidas e cada vez mais confuso com a obscuridade de meus sonhos, resolvi dividir com meu avô e com o casal a minha angústia. Durante o café da manhã contei-lhes tudo o que se passava e percebi que, depois de desabafar, as ideias foram ficando mais claras. Naquela noite fui dormir com a certeza de que acordaria com tudo resolvido. Ajeitei-me para dormir, enchi um copo d’água, subi as escadas de madeira cujo rangido era ainda mais alto no silêncio da noite, entrei no meu quarto, fechei a porta nas minhas costas, apaguei a luz, deitei e dormi.
Andava por um gramado, o sol estava se pondo e o vento soprava frio. Não conseguia reconhecer o lugar, mas tinha certeza de já ter estado ali. Olhei para o horizonte e vi um vulto aproximar-se lentamente. Era uma mulher com longos e lisos cabelos pretos divididos ao meio, vestindo um saiote de palha trançada. Parecia flutuar sobre a grama. Logo que a vi, movia-se lentamente em minha direção, mas quanto mais se aproximava, mais rápido se movia e mais alta parecia. Parou a uns dois metros de distância e pude ver seu rosto: pálido como uma vela. Seus olhos eram grandes e seu olhar profundo e amedrontador. Apontou para uma árvore que ficava próxima de onde estávamos e abriu a boca para falar ao mesmo tempo em que moveu-se repentinamente para cima de mim.
Acordei. Suando frio, rapidamente acendi a vela que estava no criado mudo, a chama bruxuleava e transformava as sombras do guarda roupas e dos outros moveis em estranhas e macabras figuras. Tomei em um gole só todo o copo de água e a minha sede não saciava. As ideias continuavam perturbadas e cada vez que fechava os olhos o momento do ataque da estranha mulher me voltava à mente. Caminhei pelo quarto, senti frio e calor, pensei, anotei, rolei na cama até ser vencido pelo sono.
Herdei da perturbada noite, olheiras e um cansaço enorme. Sentado na mesa para o café da manhã, relatei a noite aos meus companheiros e lembrei que antes de acordar, no rápido instante que antecedeu o ataque daquela mulher, enxerguei ao longe o que me pareceu ser a silhueta de uma catedral, daquelas antigas, jesuíticas. O dia foi passado dentro da biblioteca e nos dedicamos quase que completamente a pesquisas relacionadas aos povos jesuíticos, já que a única lembrança mais próxima da realidade que tinha era a da catedral.
Já estava anoitecendo quando Bill, um dos jovens que morava conosco, encontrou em um velho e empoeirado livro informações sobre a lenda de uma mulher indígena de São Miguel das Missões que, durante os conflitos locais e negociações que antecederam a Batalha de Caiboaté, teria roubado de dentro das dependências da Igreja ouro e documentos jesuíticos. Descoberta pelos padres jesuítas, a índia foi severamente castigada. Dias antes de migrarem para São Gabriel, onde aconteceriam as últimas batalhas entre Portugal e Espanha pelo território até então divido pelo Tratado de Tordesilhas, a índia foi enterrada viva, junto com o ouro roubado, aos pés de uma figueira que ficava atrás da catedral.
Ao terminar de ler a lenda, estávamos todos certos do que faríamos. Na manhã seguinte partiríamos para São Miguel. Um pouco assustados, mas motivados pelo ímpeto de encontrar ouro e os tais documentos tão importantes da nossa história, fomos dormir. Por precaução, ou por medo, preferi deixar a luz acesa. Deitei na cama e não demorou muito para que eu me encontrasse em sono profundo. O sonho não se repetiu como era de costume. Mas aquela ainda não era a minha noite de descanso. Como previsto, uma forte chuva invadiu a madrugada, apagando as luzes e soprando um vento sombrio através das janelas, esfriando minha cama e minha alma já amedrontada.
O dia amanheceu frio e a chuva ainda caia. Mais calma, mas com jeito de que duraria o dia inteiro. Continuávamos decididos a sair à caça do nosso ‘tesouro’ quando a chuva começou a cair com mais força. A viagem até São Miguel era longa e queríamos sair o mais cedo possível, mas a chuva nos impedia até então.  Optamos por viajar a tarde e aproveitar a manhã para pesquisar mais a respeito da tal lenda. As pesquisas foram inúteis; nada mais se pode achar a respeito da lenda. Almoçamos, carregamos a camionete com o que imaginávamos ser necessário e partimos para nossa jornada.
Já passava da metade da tarde quando conseguimos sair da cidade. A chuva caia fina e as estradas que eram de terra estavam agora cobertas por uma lama densa. Dentro da camionete estávamos eu, meu avô, Bill e sua namorada, Kika. A viagem era longa e nosso nervosismo não nos permitia maiores conversas ou distrações. Éramos nós, a chuva, a ansiedade e o velho rádio sintonizado em alguma estação que tocava Ligth My Fire, do The Doors.
Durante boa parte do trajeto permaneci em um sono letárgico, só acordei nos momentos em que troquei de lugar com meu avô na direção da camionete. Em um determinado ponto da viajem fui acordado por Bill, que me chamava a atenção para a parte superior da Catedral de São Miguel Arcanjo que já podia ser vista da estrada. Quando finalmente chegamos a cidade de São Miguel já estava anoitecendo, o que intensificou ainda mais a atmosfera fria do dia chuvoso.
Naqueles tempos a entrada no sítio arqueológico era mais tranquila, não precisávamos pagar e o local não era inteiramente cercado. Caminhamos em direção ao gramado em frente a catedral, que era iluminada na sua frente e em seu interior por grandes holofotes de luzes amarelas. Através das luzes era possível enxergar a chuva que caia grossa novamente. Estávamos indiscutivelmente nervosos e nitidamente eufóricos.
Minhas mãos tremiam. Eu já não sabia se meu rosto estava molhado da chuva ou de suor; um misto de expectativa e medo percorreu minha coluna causando-me um arrepio. Por um instante eu senti como se já tivesse vivido aquele momento e, de repente, a imagem daquela assustadora mulher tornou a invadir minha mente. Em flashes eu a enxergava ao meu redor, me olhando, me encarando agressivamente. A medida que avançávamos até a catedral para procurar a velha Figueira que a índia apontou em meu sonho, as sensações ficavam mais fortes, meu corpo tremia mais e a imagem da mulher ficava mais nítida.
A chuva caia arrebatadoramente no momento em que finalmente avistamos a velha figueira. Ela ficava logo atrás da catedral e a luz dos holofotes chegava fraca até lá. Abri uma das mochilas trazidas por Bill para pegar uma lanterna e o livro em que havíamos lido a lenda da índia cruelmente assassinada pelos padres jesuítas caiu no chão. O vento o abriu, virou algumas de suas páginas, rasgou outras e o arrastou até as raízes da figueira centenária. Acompanhei o movimento do livro com a lanterna e quando direcionei a luz para a árvore enxerguei a mulher do meu sonho, a índia. Estava parada ao lado da árvore e me olhava fixamente. O terror invadiu meu corpo e em um gesto impulsivo movi-me para trás pensando em sair correndo dali, derrubei a lanterna no chão e cai sentado aos pés de meus amigos, que nada viram.
Sentia-me completamente entorpecido, minhas ideias estavam novamente confusas e eu visualizava cada vez mais imagens da índia. Ouvi gritos, pedidos de socorro e vozes irreconhecíveis, de repente olhei em volta e vi a catedral reconstruída, meus amigos não estavam mais ali e eu me vi, junto dos padres criminosos do passado, ajudando. Eu me vi cometendo aquele ato vil e repulsivo. Foram segundos desta memória inconsciente; acordei com meus amigos me chamando para ver o que tinham encontrado. Levantei-me tonto e perturbado e caminhei até eles tentando, sem forças, manter-me em pé. Chegando aos pés da Figueira pude ver no buraco aberto no chão os motivos das minhas noites assombrosas das últimas semanas: Uma urna de barro fechada e restos de um esqueleto humano. Minha visão estava embaçada, minha cabeça doía, e em nenhum momento eu me vi livre dos flashes com imagens repetidas e assombrosas da índia assassinada.
Aproximei-me do buraco recém escavado, ainda cambaleante e com as visões  ainda mais fortes, abaixei-me para pegar a  urna que provavelmente continha os tais documentos e o ouro, quando encostei na urna ouvi um grito muito alto e agudo, enxerguei nitidamente a índia que eu havia assassinado e senti uma mão empurrar-me as costas. Desequilibrei-me, e o tombo para dentro do buraco que não tinha mais que 2 metros de profundidade pareceu de um precipício. Quando atingi o fundo senti a terra muito macia, abri os olhos e percebi que estava no meu quarto. Rapidamente acendi a vela do criado mudo. Suando frio e ainda apavorado levantei da cama, caminhei pelo quarto repetindo para mim mesmo que havia sido apenas um sonho. Voltei para a cama e assim que atingi aquela linha entre o sono e a consciência ouvi um sussurro muito próximo ao ouvido me respondendo: “Não, não foi um sonho”. 

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