por Bruna Danelli
15 de
janeiro de 1923
Acordei, pela manhã, em meio a
uma revolução. Não sei bem do que se trata. Papai e mamãe ficam trancados em
casa. Não deixam meus irmãos e eu brincar lá fora. Ouvi eles proseando, agora
de tarde, ao redor do fogão à lenha sobre uma tal revolta. Perceberam que eu estava
perto. Calaram-se. Curiosa, perguntei do que se tratava. “Isso é conversa
de gente grande!”, foi a resposta que eu tive. Devo ter ouvido errado.
Meu pai não foi na bodega essa
semana. Por isso, vou parar de escrever por hoje, pois o estoque de velas está
acabando.
16 de janeiro de 1923
Não fui na escola. Minha mãe
disse que meu professor estava doente. Meu professor é meio revolucionista, não
se abate com qualquer coisa. Não acreditei, mas gostei da ideia de ficar em
casa. Pena que não pude ir brincar lá fora. Meu pai e minha mãe trataram os
bichos, de manhã cedo, e ficaram dentro de casa. Essa história está muito
estranha. Vi meu pai saindo de casa hoje
de tarde. Ele foi na bodega e trouxe algumas velas, um saco de arroz e mais
algumas coisas. Parecia que estava estocando alimentos em casa. De tardizinho,
quando minha mãe foi tirar leite, vi que meu pai estava conversando com ela.
Saí escondida de casa e fui para o galpão perto da estrebaria. Meu pai disse
que ouviu no rádio que estavam se aproximando. Mas quem estava se aproximando?
Meu pai tinha os olhos arregalados e mãos tremendo. Isso quer dizer, que coisa
boa não é. Minha mãe ficou calada, mas com a aparência de preocupada.
17 de janeiro de 1923
Essa noite, acordei com um susto. Escutei ao longe
tiros de espingarda, latidos de cachorros e tropés de cavalos. Quando amanheceu
corri contar pra minha mãe. Ela estava passando o café na cozinha e se virou.
Menina, você deve ter sonhado. Insisti. Mesmo assim ela continuou a dizer que
eu tinha sonhado. Ninguém acredita em mim. Estou com um pressentimento de que
algo está errado. Meus pais ficam mudos. Hoje de meio dia, quando estávamos
almoçando, meu pai falou que não podemos deixar as velas acesas durante a noite
e temos que dormir cedo. Por isso, hoje tive que escrever mais cedo, porque
daqui a pouquinho vou dormir.
18
de janeiro de 1923
Hoje tive a certeza que não sonhei. E ai de quem me
dizer ao contrário. Eu demorei pra dormir. Ouvi os mesmos latidos, tropés e
tiros da noite passada. Eu também vi que meu pai acendeu a vela e escutei minha
mãe tramelando a porta. Acho que eles tinham esquecido de tramelar. Meu pai
veio até o nosso quarto pra vê se a gente estava dormindo. Fingi que estava. De
manhã, antes de sair o sol, meu pai estava de pé. Minha mãe nem foi tirar
leite. Ela foi no nosso quarto e disse pra dormirmos mais um pouco, porque não
ia ter café da manhã. Perguntei se ela estava com medo de sair de casa, por
causa da noite passada. Ficou louca, menina?,ela me respondeu bruscamente. Não
aguentei e falei tudo o que eu tinha ouvido na noite passada. Ela me fez levantar
da cama e me levou até a cozinha. Como sou afilha mais velha, ela me disse que
não posso contar nada aos meus maninhos mais novos. Me senti guardiã de uma
informação secreta que ninguém jamais iria ter. Ela me falou meio por cima de
uma tal revolução que está acontecendo. Minha mãe não sabe ao certo sobre a
revolução. Só me disse o que meu pai havia escutado no rádio da bodega. Tenho
que proteger meus irmãos. Já está na hora de dormir, pois se ficarmos com luzes
ligadas podemos ser os alvos da revolução.
19
de janeiro de 1923
Não dormi direito à noite. Os
tropés de patas nessa madrugada foram maiores. Acho que gigantescos. Parecia
que havia uma manada fugindo. De manhã, bem cedinho, estávamos reunidos perto
do fogão a lenha e escutamos tiros, mas agora eram muitos. Os tropés pareciam
fugir. Em poucas horas, não se ouviu
mais o barulho. Meu pai e minha mãe só se olhavam, com uma expressão de medo.
Meus irmãos pequenos perguntaram a eles o que estava acontecendo. Eu disse pra
eles que não era nada, e eles tinham que ir brincar no quarto. De tarde, a cena
que meu pai viu foi horrível. Corpos jogados ao chão, estraçalhados de tiros,
que estavam no fundo das terras de meu pai. Voltou espantado. Perguntou a minha
mãe o que fazer. Ela disse que ele teria que enterrar, mas teria que esperar
passar pelo menos um dia, para que tivessem a certeza de que estavam seguros, e
que ninguém faria mal para a nossa família. Dessa vez, participei da conversa.
Pois na verdade eu não sou mais uma criança, tenho 14 anos e muitas meninas da
minha idade já casaram e tiveram filhos.
20 de janeiro de 1923
Meu professor veio até minha
casa, pela manhã. Veio especular meu pai sobre o que ele tinha visto e ouvido.
Meu pai contou tudo o que aconteceu nesses últimos dias. O professor explicou
mais sobre a revolta. Disse que se tratava de uma revolução entre uns talde
Maragatos e Chimangos. Papai falou que não era de nenhuma força e que por isso
não saía de casa, para não ser confundido e ser morto. Meu professor perguntou
o que ele faria com os mortos. Vou enterrar amanhã, tudo estará mais calmo,
disse papai. Está certo, na semana que vem teremos aula, quem sabe até lá tudo
se tranquiliza, disse o professor. Meu dia foi chato, espero que amanhã eu
possa ir olhar meu pai enterrar os mortos.
21 de janeiro de 1923
Hoje eu madruguei. Estava cheia
de expectativa. Mas meu pai não quis me levar junto pra enterrar os mortos no
combate. Saí escondida da minha mãe e segui meu pai. Ele me enxergou quando eu
já estava lá no local. Me mandou ir pra casa. Não escutei. Ajudei ele a
enterrar. Enterramos uns seis corpos e, quando estávamos voltando, ouvimos uns
gemidos atrás de uns arbustos e uma árvore. Meu pai foi rapidamente até lá. Era
um índio. No pescoço um lenço vermelho. Ainda estava vivo. Mais morto do que
vivo, mas estava vivo. Meu pai pediu que eu fosse lá em casa pra buscar um
crucifixo. Busquei. Meu paicolocou no peito do índio. Dentro de alguns minutos
ele morreu. Para esse, meu pai fez um túmulo mais caprichado. Esse lutou para
viver. Esse devia ser o comandante da tropa. Aquele lenço o identificava.
Enterrou ele ao pé da árvore.
22 de janeiro de 1923
Um boi, hoje de manhã, escapou e
foi para as bandas dos túmulos que meu pai fez. Meu pai voltou de lá, sem cor.
Parecia aterrorizado. Sentou na cadeira perto do fogão e nem quis o mate que
minha mãe ofereceu pra ele. O que que foi, homem? Viu assombração? Ficou
calado. Depois de cinco minutos, abriu a boca. Vocês não vão acreditar. Aquele
homem, que achávamos que era o comandante da tropa, estava com a mão fora da
cova. Senti um arrepio na minha espinha quando meu pai falou isso. Minha mãe
ficou espantada. Temos que cobrir a mão novamente, disse meu pai. Eu não vou,
falou minha mãe depressa. Eu falei que ia, mesmo com medo, mas precisava ver
para acreditar. Antes de irmos, meu pai disse para minha mãe arrumar uma
garrafinha de cachaça para levarmos até o túmulo. Meu avô sempre dizia que era
bom levar cachaça até o túmulo, para que as almas que ainda não tivessem ido ao
céu compreendessem que as pessoas que eles tinham deixado estavam conformados
com a sua perda e que podiam descansar em paz. Chegando lá, fiquei
impressionada. A mão estava mesmo para fora do túmulo. Minhas pernas travaram.
O que foi, menina? Eu falei que era melhor não ter vindo. Agora me ajude, disse
meu pai. Cavamos um pouco mais fundo e enterramosa sua mão. E, por último
colocamos a garrafa de cachaça em cima do túmulo. Confesso que estou com muito
medo. Ele era o único índio entre todos aqueles homens brancos. E somente ele
estava com o lenço, e tinha sobrevivido há dois dias baleado no meio da roça.
Será que ele tinha algum poder sobrenatural? Tenho que esquecer esse
acontecido.
23 de janeiro de 1923
Tive pesadelos durante a noite.
Sonhei que o índio estava querendo sair da cova e fazer algo que não pôde em
vida. De manhã, contei para meu pai. Pedi para ele que me acompanhasse, para
que eu visse que o túmulo estava tapado, e a lembrança do dia passado fosse
esquecida. Chegando lá, os pesadelos começaram a se tornar reais. Minhas pernas
fraquejaram novamente. Sua mão, a mesma do dia passado, estava para fora do
túmulo. E a cachaça? A garrafa estava vazia. Corri para casa com muito medo.
Meu pai ficou lá cobrindo novamente a mão. Cheguei em casa tremendo. Estou
tremendo até agora. Fiquei o dia inteiro trancada nesse quarto. Será que aquele
índio quer me dizer alguma coisa? Só sei que estou com medo de dormir. Não
quero que ele atormente meu sono.
24 de janeiro de 1923
Não dormi quase nada, na noite
passada. E quando dormi, os pesadelos voltaram. O índio tinha o crucifixo no
peito, e me pediu que eu salvasse a sua alma. Devo estar ficando louca. Contei
pra minha mãe o que estava acontecendo. Vou te levar na missa e você conversa
com o padre, disse ela. Não fui ao túmulo para ver o que tinha acontecido. Ouvi
meu pai falando escondido para minha mãe que a mão estava para fora. Sinto
minha vida se tornando um pesadelo, uma assombração.Hoje vou tentar dormir mais
cedo, quem sabe hoje durmo um sono tranquilo.
26 de janeiro de 1923
Ontem, não tinha coragem de
escrever em meu diário. Encher ele de coisas ruins que me atormentaram o sono.
Mas, hoje, estou confiante. O padre, ontem, me pediu eu levasse algumas velas,
flores e um litro de cachaça e rezasse um terço no túmulo. Eu fiz como ele me
pediu. Pedi para meu pai me acompanhar, porque minha mãe é uma medrosa. Meu pai
antes de me levar disse que de manhã a mão estava para fora. Mesmo assim eu
quis ir. Era a única chance de me libertar daquela assombração. Acendi as
velas. Rezei o terço, pedi que descansasse em paz e que me libertasse dos
pesadelos. Coloquei as flores e o litro de cachaça sobre o túmulo. Voltei para
casa. Agora, estou mais tranquila.
27 de janeiro de 1923
Graças a Deus dormi que nem pedra,
na noite passada. Hoje, me sinto mais leve. Meu pai me contou que a mão não
estava para fora da cova. Umas vizinhas vieram passear aqui em casa. Contei a
elas tudo o que aconteceu. Que o índio me libertou das angústias. Elas ficaram
meio espantadas. Mas,carolas como são, já me pediram onde fica o túmulo para
irem rezar para a alma do índio, que eu nem ao certo sei o nome. A vida,
devagarinho, vai voltando ao normal.
28 de janeiro de 1923
Xindangue. Xindangue. Xindangue.
Maragato. Comandante da tropa. Roubou gado e fugiu. Na fuga ergueu a bandeira
vermelha. Os inimigos para confundir ele levantaram bandeira vermelha. Combate.
Morreu. Foi essa a história que ouvi do meu professor, hoje, sobre o índio que
conheci na beira da morte e depois de morto. Pra mim, foi um comandante que
lutou para vencer. E, hoje ajuda as pessoas a vencerem os desafios.
20 de fevereiro de 1923
A vida está tranquila. Hoje, fui
ao túmulo, pois fazia quase um mês que não o visitava. Sempre tinha gente por
lá rezando, levando flores, velas, principalmente, cachaça, pedindo e pagando
promessa pro índio. O índio está ficando famoso por ajudar nos pedidos das
pessoas e a sua história também. Muitos não acreditam na história que eu e meu
pai contamos. Quem não quer, não precisa acreditar, a
menos que o índio persiga seu sono, até ter que rezar para a sua alma.